MANDADO DE SEGURANÇA/SERVIDOR
PÚBLICO
Mandado de Segurança -
Procedimentos Regidos por Outros Códigos, Leis Esparsas e
Regimentos - Procedimentos Especiais - Procedimento de Conhecimento -
Processo de Conhecimento - Processo Cível e do Trabalho
25 - 0155101-65.2017.4.02.5101
Número antigo: 2017.51.01.155101-8 (PROCESSO ELETRÔNICO)
Distribuição-Sorteio
Automático - 27/07/2017 14:09
07ª Vara Federal do Rio de
Janeiro
Magistrado(a) LUIZ NORTON
BAPTISTA DE MATTOS
AUTOR: MARCOS GABRIEL BOTELHO
SALDANHA DA GAMA
ADVOGADO: RJ179700 - PAULO
ROBERTO DE OLIVEIRA
REU: DIRETOR DO SERVICO DE
INATIVOS E PENSIONISTAS DO COMANDO DA MARINHA - SIPM
PODER JUDICIÁRIO
JRJCKG
JUSTIÇA FEDERAL
SEÇÃO JUDICIÁRIA
DO RIO DE JANEIRO
07ª Vara Federal do Rio de
Janeiro
MANDADO DE SEGURANÇA/SERVIDOR
PÚBLICO - nº 0155101-65.2017.4.02.5101
(2017.51.01.155101-8)
Autor: MARCOS GABRIEL BOTELHO
SALDANHA DA GAMA.
Réu: DIRETOR DO SERVICO DE
INATIVOS E PENSIONISTAS DO COMANDO DA MARINHA - SIPM.
Decisão
Trata-se de mandado de segurança
impetrado por MARCOS GABRIEL BOTELHO SALDANHA DA GAMA contra ato do
DIRETOR DO SERVIÇO DE INATIVOS E PENSIONISTAS DO COMANDO DA
MARINHA – SIPM, que cancelou a pensão por morte da qual
o impetrante era beneficiário.
Afirma que sua mãe
percebia pensão na qualidade de viúva de militar.
Quando do falecimento de sua genitora, em outubro de 2016, houve a
reversão do benefício para o impetrante e para sua
irmã, na qualidade de filhas de militar. No entanto, embora
tenha nascido com o sexo feminino, afirma ser transexual e se
identificar com o gênero masculino desde a infância, o
que lhe gerou grande sofrimento. Assim, segundo consta dos autos (fl.
65), submeteu-se à cirurgia de histerectomia total (retirada
do útero) e mamoplastia (retirada dos seios), bem como a
tratamento hormonal no Hospital Pedro Ernesto (fls. 39/40), mas não
à cirurgia de redesignação de sexo.
Nesse sentido, o ora impetrante
moveu ação na Justiça Estadual (nº
0037973.35.2015.8.19.0203), cujo pedido foi julgado procedente, em
11/12/2015, “para autorizar a alteração do
assentamento de nascimento da parte autora, tanto para a mudança
do seu prenome, como também do seu sexo para masculino,
passando a se chamar MARCOS GABRIEL BOTELHO SALDANHA DA GAMA,
mantendo inalterados os demais dados” (fls. 67/68).
Ao comparecer à Marinha no
corrente ano para recadastramento periódico, tendo em vista a
continuidade da percepção da pensão (“prova
de vida”), o impetrante, hoje com 54 anos de idade, apresentou
seus documentos atuais, em que consta seu nome social masculino.
Assim, seu benefício foi cancelado, pois entendeu a autoridade
impetrada que os dispositivos da Lei nº 3.765/1960 “limitam
ao filho do sexo masculino o direito à reversão até
21 anos de idade ou até 24 anos de idade, se estudante
universitário” (fl. 47).
Alega o impetrante que “mesmo
após todo o tratamento apresentado, o que incluiu a
retificação do seu prenome e a redesignação
do gênero atribuído, continua a ser assistido por uma
GINECOLOGISTA, o que corrobora com o entendimento que ele ainda é
biologicamente é uma MULHER” (fl. 8). Invocando os
princípios constitucionais da dignidade humana, legalidade e
razoabilidade, afirma que não mudou seu sexo biológico;
que a sentença que mudou o seu gênero transitou em
julgado em 14/7/2016, depois do falecimento do instituidor
(6/9/2009); e que o ato impetrado é nulo porque imotivado.
Requer, assim, seja restabelecida a pensão.
A medida liminar pleiteada foi
deferida na decisão de fls. 82/84, com base nos arts. 23 e 24
da Lei nº 3.765/1960, segundo os quais se entendeu que “a
troca no prenome no Registro Civil não consta como uma das
hipóteses para a perda do benefício previdenciário
em questão, não cabendo à Administração
Pública inovar e alargar aquele rol de acordo com sua vontade
e/ou interpretação”.
As informações
foram prestadas às fls. 109/112, em que a autoridade impetrada
defendeu o ato praticado.
O MPF deixou de se manifestar por
entender “não caracterizado, in casu, o interesse
público que justifique a intervenção do
Ministério Público” (fl. 139).
A União interpôs
agravo de instrumento da decisão liminar (fls. 140/146), ao
qual foi atribuído efeito suspensivo por decisão
monocrática no TRF da 2ª Região (fls. 147/151).
É o relatório.
Decido.
Com base no art. 1.018, §
1º, do CPC, exerço juízo de retratação
da decisão de fls. 82/84.
A pensão havia sido
concedida ao impetrante por aplicação da redação
original do art. 7º da Lei nº 3.765/1960 (fl. 43 e 111),
que assegurava o pagamento da pensão às filhas maiores:
"Art 7º A pensão
militar defere-se na seguinte ordem:
I - à viúva;
II - aos filhos de qualquer
condição, exclusive os maiores do sexo masculino, que
não sejam interditos ou inválidos;" (grifo do
Juízo)
Apesar disso, quando do
recadastramento, a autoridade impetrada agiu corretamente ao levar a
sério a identidade de gênero do impetrante, já
reconhecida inclusive por sentença judicial (fls. 65/68). Como
narrado nos autos, o impetrante sofreu durante toda a vida por se
identificar desde a primeira infância com o gênero oposto
ao do seu sexo biológico, o que caracteriza o transexualismo.
Assim, na idade adulta, submeteu-se a tratamento hormonal e a
cirurgias de retirada do útero e das mamas. O próprio
impetrante declara apenas não ter realizado a
transgenitalização “por ser uma cirurgia que
impõe riscos à minha saúde e à minha
vida” (fl. 57).
Tal como consta na sentença
da Justiça Estadual, “[n]ão é razoável
condicionar a possibilidade de alteração registral de
gênero sexual à concretização de cirurgia
de transgenitalização. Impor tal condição
seria obrigar o indivíduo a se submeter a uma cirurgia
complexa e dolorosa e que, em alguns casos, é inclusive
contraindicada pelos riscos que impõe” (fl. 66). Assim,
a sentença julgou procedente o pedido formulado pelo ora
impetrante “para autorizar a alteração do
assentamento de nascimento da parte autora, tanto para a mudança
do seu prenome, como também do seu sexo para masculino,
passando a se chamar MARCOS GABRIEL BOTELHO SALDANHA DA GAMA,
mantendo inalterados os demais dados” (fls. 67/68). Assim, para
todos os efeitos de direito, trata-se de um indivíduo do sexo
masculino, não sendo relevante para tais fins que não
se tenha submetido à transgenitalização e que
ainda se consulte com ginecologista. Também não importa
para tais fins sua orientação sexual.
Sobre o tema, está
pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal o RE 845.779, em
que se discute, em regime de repercussão geral, o direito de
transexuais serem tratados de acordo com o gênero com o qual se
identificam. O relator do caso, Min. Luís Roberto Barroso,
afirmou em seu voto:
“13. Os transexuais são
uma das minorias mais marginalizadas e estigmatizadas da sociedade.
Para que se tenha uma ideia da gravidade do problema, o Brasil lidera
o ranking de violência transfóbica, registrando o maior
número absoluto de mortes no cenário mundial. De acordo
com informativo divulgado neste ano pelo Projeto de Monitoramento de
Homicídios Trans (Trans Murder Monitoring Project), entre
janeiro de 2008 e dezembro de 2014, foram registrados 1.731 casos de
homicídios de pessoas trans em todo o mundo, sendo que 681
destes dizem respeito ao Brasil (i.e., cerca de 40%). Não por
acaso, a expectativa de vida desse grupo é de apenas cerca de
30 anos, muito abaixo daquela apontada pelo IBGE para o brasileiro
médio, de quase 75 anos.
14. A incompreensão, o
preconceito e a intolerância acompanham os transexuais durante
toda a sua vida e em todos os meios de convívio social. Desde
a infância, tais pessoas são hostilizadas nas suas
famílias, comunidades e na escola.
(...)
15. Atualmente, a transexualidade
é considerada uma patologia, mas é preciso olhar o
problema dos transexuais sob a perspectiva do direito ao
reconhecimento. Na atual versão do Código Internacional
de Doenças (CID-10), o transexualismo é catalogado como
uma doença. O mesmo se verifica no Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais, produzido pela Associação
Americana de Psiquiatria, seguido pelo Ministério da Saúde
e pelo Conselho Federal de Medicina brasileiros.
É certo que o
reconhecimento do transtorno de identidade de gênero como
doença psiquiátrica permitiu avanços para os
transexuais, ao conferir foros de autoridade científica à
sua condição. Isso se refletiu, por exemplo, na
autorização de operações de redesignação
de sexo, inclusive custeadas pelo Sistema Único de Saúde
(SUS), e no reconhecimento da possibilidade de alteração
do nome de registro civil após a cirurgia. Porém, mais
recentemente, a patologização tem servido para reforçar
o preconceito existente na sociedade contra esse grupo. Por isso, é
preciso olhar a questão sob a perspectiva do direito ao
reconhecimento.
16. A verdade é que não
se trata de uma doença, mas de uma condição
pessoal, e, logo, não há que se falar em cura. O
indivíduo nasceu assim e vai morrer assim. Vale dizer: nenhum
tipo ou grau de repressão vai mudar a natureza das coisas.
Destratar uma pessoa por ser transexual, isto é, por uma
condição inata, é como discriminar alguém
por ser negro, judeu, índio ou gay. É simplesmente
injusto, quando não perverso”.
(Disponível em
http://s.conjur.com.br/dl/voto-ministro-barroso-stf-questao.pdf.
Acesso em 13/9/2017).
Portanto, entender que o
impetrante seria titular do direito à pensão seria
considerá-lo, em alguma medida ou para certos fins, como um
indivíduo do sexo feminino, o que reavivaria todo o sofrimento
que teve durante a vida e violaria sua dignidade, consubstanciada no
seu direito – já reconhecido em juízo – a
ser reconhecido tal como é para fins jurídicos, ou
seja, como um indivíduo do sexo masculino.
Não seria de se esperar
que a Lei nº 3.765/1960 previsse a mudança de gênero
como uma hipótese de cancelamento da pensão, situação
que, se hoje é inusitada, àquela época era
impensável. Nada obstante, por ser um indivíduo do sexo
masculino para todos os fins de direito, o impetrante não
preenche uma condição essencial para a percepção
do benefício, o que, como alegado pela União e acolhido
na decisão monocrática do agravo de instrumento,
autoriza a anulação do ato administrativo (art. 53 da
Lei nº 9.784/1999).
Assim, agiu com correção
a autoridade impetrada ao cancelar a pensão, como também
agiria na situação hipotética inversa, se
concedesse o benefício a uma requerente identificada com o
gênero feminino, apesar de nascida com o sexo masculino. A
propósito, não há um problema de direito
intertemporal, porque a sentença de fls. 65/68 é
meramente declaratória do gênero com o qual o impetrante
sempre se identificou desde a infância, tendo apenas legitimado
essa situação para fins jurídicos. De toda
forma, ainda que se entenda diferentemente, o impetrante deixou de
preencher um dos requisitos essenciais para a percepção
da pensão, o que autoriza o seu cancelamento. Não é
inédita no direito a revisão de benefícios
concedidos em razão de uma condição em princípio
permanente, mas cuja mudança é incompatível com
a continuidade da prestação (e.g., a recuperação
da capacidade laborativa implica a cessação de
aposentadoria por invalidez). Também não considero
haver vícios formais no ato impetrado, que foi precedido de
prazo para defesa (fls. 43/44) e expôs a motivação
para o cancelamento da pensão (fl. 47).
Embora a presente decisão
seja patrimonialmente desvantajosa para o impetrante, ela legitima
sua identidade de gênero e sua condição
existencial, aspecto mais importante e que deve ser levado a sério
em todas as suas consequências.
Diante do exposto, com base no
art. 1.018, § 1º, do CPC, exerço o juízo de
retratação da decisão de fls. 82/84 e revogo a
antecipação de tutela.
Comunique-se à Exma. Sra.
Relatora do agravo de instrumento (fls. 147/151), remetendo-se cópia
desta decisão por meio do Portal Processual Eletrônico,
conforme determina a Nota Técnica nº 08/2014/TRF/SAJ.
Determino ainda as seguintes
providências:
1 - Com base no art. 292, §§
2º e 3º, do CPC, corrijo de ofício o valor da causa
para R$ 148.292,56 (cento e quarenta e oito mil, duzentos e noventa e
dois reais e cinquenta e seis centavos), correspondente a doze vezes
o valor da pensão que o impetrante pretende restabelecer (fl.
125).
2 – Concedo prazo de quinze
dias para que o impetrante tome as seguintes providências, sob
pena de extinção do processo sem resolução
de mérito: (a) recolha a diferença de custas
correspondente à alteração no valor da causa,
considerando que possui outra fonte de renda superior a três
salários mínimos (fl. 60); e (b) promova a inclusão
no feito de sua irmã SUSANA BOTELHO SALDANHA DA GAMA, na
qualidade de litisconsorte necessária (CPC, art. 114), uma vez
que eventual procedência do pedido implicaria redução
da cota que percebe.
Decorrido o prazo do item 2 sem
cumprimento, venham os autos conclusos para sentença.
3 – Cumpridas as
providências acima, remetam-se os autos à SEDCP para
retificação do polo passivo e cite-se SUSANA BOTELHO
SALDANHA DA GAMA. Uma vez decorrido o prazo para resposta, tendo em
vista o desinteresse do MPF no feito (fls. 138/139), venham os autos
conclusos para sentença.
Publique-se. Intimem-se.
Rio de Janeiro, 13 de setembro de
2017.
( assinado eletronicamente –
alínea ‘a’, inciso III, § 2º, art. 1º
da Lei 11.419/2006 )
FREDERICO MONTEDONIO REGO
Juiz(a) Federal Substituto(a) no
exercício da Titularidade
Este documento é parte do caderno judicial do SJRJ do diário publicado em 21/09/2017. O caderno do diário eletrônico é assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por MARIA ALICE GONZALEZ RODRIGUEZ:10382, Nº de Série do Certificado 1236543801294167879, em 20/09/2017 às 12:32:16.